domingo, 9 de outubro de 2022

8 anos depois e pouca coisa mudou

Faz 8 anos e 4 dias que a Fórmula 1 vivia o seu tempo mais sombrio desde a morte de Ayrton Senna. Um acidente que abalou o mundo do automobilismo, assustou a todos que assistiam a corrida ao vivo, agonizou por mais de 9 meses aqueles que torciam por uma recuperação, até que nos separou do talento, do futuro, do carisma... de Jules Bianchi.

Um piloto formado pela academia da Ferrari, nascido na França e que até hoje inspira muitos compatriotas. Um menino que já nasceu com o sangue de corredor, sobrinho de Lucien Bianchi, outro piloto que perdeu a vida nas pistas. Um jovem que trilhou seu próprio sucesso e despertou a atenção da Ferrari, quando em 2009 foi chamado para uma sessão de testes - que visava determinar um substituto para o lesionado Felipe Massa, afastado para o fim daquela temporada após seu acidente na Hungria. Mesmo não sendo chamado para substituir o brasileiro, a sessão de testes foi bem sucedida o suficiente para o piloto de ainda 20 anos se tornar o primeiro membro da academia de pilotos da Ferrari, que hoje inspira e forma talentos para a categoria, encurtando a distância entre sonho e realidade para jovens talentos. E ao longo dos 5 anos em que fez parte do programa de desenvolvimento de pilotos, o francês concluiu com êxito a sua formação. Um talento que rendeu à equipe Marussia seus primeiros e únicos pontos na Fórmula 1, no GP de Mônaco de 2014. Um futuro da mais tradicional equipe que a categoria já viu, e uma esperança de toda a nação dos Tifosi. Uma expectativa para todo o automobilismo e uma alegria para todos aqueles que o viram correr. Esse era Jules Bianchi.

Você ainda não se foi, não enquanto sua memória ainda viver. Sua família se lembra de você, Jules. Os fãs se lembram de você. Eu me lembro de você, com carinho. O mundo se lembra de você. E nós sentimos saudades. Pena que não posso afirmar isso da direção de provas da Fórmula 1. Mesmo após múltiplos diretores assumirem esse posto. Digo isso amparado pelo fato de que o parágrafo anterior não fez menção ao capítulo final da trajetória de Jules - que deve sempre ser lembrado, não para definir quem foi Jules Bianchi, mas sim para definir o futuro da segurança da Fórmula 1 -, que não se repetiu no GP do Japão de 8 anos depois mais por sorte do que por juízo. Porque, apesar de decorrido todo esse tempo, o mesmo cenário estava pronto. Ainda bem que a tragédia não se repetiu.

E que cenário era esse? Um GP em Suzuka, um circuito muito desafiador, muito respeitado pelos pilotos que gostam de se sentir desafiados. Um traçado que não é nem horário, nem anti-horário, mas único e em forma de 8, recheado de diferenças de elevação, curvas com as mais variadas características (desde a primeira curva de entrada forte e dupla tangência, passando pelos Esses e a subida da curva Dunlop em alta velocidade, contando ainda com um hairpin e a curva Spoon, a velocísssima 130R e a chincane), que exigem dos mais diversos atributos do carro e da pilotagem e, por fim, uma pista bem estreita, que não perdoa muitos erros. Fica no Japão, um país em que chuvas fortes não são incomuns, e que já se mostraram presentes em diversas edições desse GP. Contudo, tanto em 2014 como em 2022, não se pode falar que as chuvas não eram previstas. Apesar disso, foram duas corridas que começaram no horário inicialmente programado, inalterado apesar dos alertas de forte chuva. E, finalmente, nesse cenário corriam carros de pelo menos 691 kg (2014) ou 795 kg (2022), acrescidos de 110 kg de combustível e um downforce muito superior inclusive ao prórpio peso do carro.

Uma visão gráfica desse cenário: uma visibilidade baixíssima devido a combinação de peso, downforce e velocidade de um carro de Fórmula 1, como pode ser visto nas imagens transmitidas pelas câmeras onboard de todos os carros, disponíveis pela plataforma de transmissão por assinatura F1TV:

Fonte: speedcafe.com


Chamo a atenção para o fato de que as imagens não foram amplamente divulgadas pela transmissão oficial do GP, restando aos fãs e telespectadores apenas a alternativa de descobrir mais sobre o incidente a partir das imagens do F1TV.

É compreensível que cenas mais gráficas e emergenciais não são as que mais compõem a propaganda da Fórmula 1. Não é isso que a categoria vende e não é sobre isso que se trata automobilismo. Aqui cabe um parênteses da reclamação que muitos pilotos e chefes de equipe fizeram a respeito da alta frequência de replays mostrados ao vivo do acidente de Romain Grosjean do Bahrain em 2020 - o francês bateu em um guard-rail e sua Haas partiu em dois. Dentre eles Daniel Ricciardo chegou a mencionar que era desagradável rever um acidente tão impactante múltiplas vezes, em que o replay era vendido como entretenimento. Se tratava de um momento em que da corrida em que era efetuado o resgate de Grosjean e os preparativos eram feitos para viabilizar o retorno da corrida, logo os pilotos de fato não queriam ser expostos a uma cena capaz de abalá-los psicologicamente para a corrida. O ponto de Ricciardo é bem válido e realmente uma exposição excessiva de cenas impactantes de acidentes pode trazer repercurssões adversas para a categoria. Talvez por isso a transmissão oficial da Fórmula 1 optou por não dispor as imagens que estavam disponíveis apenas no F1TV.

Fechando esse parênteses e voltando para a imagem, nota-se que um piloto francês, Pierre Gasly, sob condições de baixíssima visibilidade se aproxima de um trator. O canal Boteco F1 (link: https://www.instagram.com/tv/Cjf792krBSF/?utm_source=ig_web_copy_linkcomplementa o ocorrido com o vídeo da mesma plataforma F1TV, em que é possível concluir que Gasly se aproximava em alta velocidade da curva em que Carlos Sainz havia batido na primeira volta da corrida. Pelo fato do carro do espanhol da Ferrari ainda estar na pista, foi acionada a bandeira amarela, em que Gasly, ao seguir na corrida, deveria, por regra, se manter dentro de um limite de velocidade estipulado. É importante ressaltar que a condição de pista era de bandeira amarela, reportando acidente à frente, e a bandeira vermelha, indicando a interrupção da corrida, seria acionada apenas alguns segundos depois de Pierre passar pelo carro batido de Sainz. Contudo, já era possível ver tratores na pista fazendo o resgate da Ferrari batida, enquanto a Alpha Tauri de Gasly passava em alta velocidade.

Surgem dois questionamentos sobre a situação descrita: o porquê de Gasly estar em velocidade elevada e o porquê de haver tratores na pista nessa situação e momento. O primeiro fato pode ser explicado pelo fato de que quando se estipula um limite de segurança para a velocidade, em qualquer situação, há de se convir que os pilotos buscarão exatamente esse limite, não como afronta às regras ou imprudência, mas pelo fato de se tratar da própria profissão do piloto, que busca ser o mais rápido possível em qualquer ponto da corrida. A segurança deve partir do próprio limite de velocidade. Portanto é válido questionar apenas se Gasly estava dentro do limite de velocidade para bandeira amarela, e não se ele "estava rápido" sob ponto de vista subjetivo. Destaque ainda para o fato de que a condição limite para tal análise deve ser de fato bandeira amarela, pois o vídeo mostra o acionamento da bandeira vermelha em um instante posterior ao incidente.

O segundo ponto é o cerne de toda a discussão até aqui desenvolvida: no GP do Japão de 2014, Adrian Sutil rodou na saída da curva Dunlop após aquaplanar em um ponto muito específico do traçado (a diferença de elevação da curva fez com que a água na pista não ficasse parada, fazendo com que os carros se aproximassem da saída da curva em alta velocidade, com baixa visibilidade, com a pista muito escorregadia e água em movimento, o que fez daquele ponto da pista um lugar de maior probabilidade de reincidência de acidentes). Como a área de escape era de fato ampla, não se acreditava que seria um problema recolher o carro de Sutil com tratores, enquanto a corrida prosseguia, para piorar, em bandeira verde. Bianchi então rodou no mesmo ponto da pista na volta seguinte, batendo sua cabeça diretamente no trator que recolhia o carro de Sutil, ferindo-se fatalmente. 8 anos depois, eis que lidamos com outro francês, na mesma pista, com a mesma situação. Acredito que independetemente da velocidade que Gasly desenvolvia devia ser consenso que aqueles tratores não deviam estar ali. Até quando a Fórmula 1 vai permitir esse grau de reincidência de erros?

Já não bastou uma lição em 2014? Como agravante, nem a própria situação de Bianchi, na época, foi sem precedentes: em 2007, uma forte chuva em Nürburgring fez com que os carros aquaplanassem na primeira curva (que também apresenta diferença de elevação), e vários carros rodaram, inclusive Vitantonio Liuzzi que quase atingiu o safety car (cujo piloto, demonstrando ótimo reflexo, teve que dar uma forte arrancada para evitar um acidente com a Toro Rosso que rodava em sua direção) e ainda chegou a encostar de leve no trator que recolhia a McLaren de Lewis Hamilton. Somado a esse incidente, o GP Brasil de 2003 também foi debaixo de chuva, e múltiplos carros rodaram entre saída do "S do Senna" e entrada da "Curva do Sol" (outro trecho com diferença de elevação). Schumacher rodou e naquele instante era possível ver fiscais de pista, que recolhiam outros carros já acidentados, evadindo a pista e pulando a barreira de proteção para se proteger da Ferrari que rodava na direção deles e não muito longe de outro trator que era operado pelos fiscais.

Aqui eu aproveito para retomar o válido ponto de Ricciardo sobre a excessividade de replays de um incidente: acredito que um meio termo deva ser encontrado para um equilíbrio entre transparência e exposição, pelo fato de que é realmente importante não se utilizar os incidentes como divulgação para o entretenimento, ao passo em que também é relevante que fãs, jornalistas, pilotos, equipes e dirigentes estejam cientes dos incidentes, suas causas e especificidades para que soluções sejam tomadas em conjunto para evitar que se repitam os mesmos erros. Justamente por isso, não me surpreende que um acidente tão pouco divulgado como o de Jules Bianchi seja o foco de uma análise de reincidência: se trata de um acidente cujas imagens divulgadas para a opinião pública são apenas gravações não oficiais de torcedores nas arquibancadas que o filmaram, e em que as ações por parte de fiscais de pista e dirigentes de prova foram julgadas pela própria FIA (que determinou que a causa do acidente foi imprudência do piloto francês, pouco mencionando a presença dos tratores na pista), e não por uma perícia externa. A sensação que fica é de fato a falta de transparência.

Complementando o incidente, a repórter Mariana Becker perguntou Mario Isola, da Pirelli, sobre o desenvolvimento dos pneus e o porquê de tal desempenho dos compostos de chuva pesada da fabricante italiana, gerando muito "spray" e uma condição adversa de visibilidade para os pilotos (o que contribuiu em grande parte para o incidente de Gasly). A resposta de Isola surpreende por mostrar uma aparente descoordenação de projetos para os compostos: detalhou-se que a FIA é responsável pelo projeto do conceito dos carros de Fórmula 1, a partir do regulamento vigente, e então a Pirelli deve se adequar aos parâmetros já determinados para projetar seus pneus, o que pode comprometer a dispersão da água da chuva (um exemplo disso é a interferência do pacote aerodinâmico no modelo final do protótipo, que, em condições de pista molhada pode interferir nos níveis de "spray"). Somado a isso, foi mencionado o desinteresse das equipes em desenvolver os compostos pra chuva, uma vez que estão mais interessadas em extrair o máximo de performance dos pneus slicks para pista seca, condição em que mais são realizadas as corridas, estatisticamente. Dessa forma a própria Pirelli se vê limitada em suas ações e o desenvolvimento dos pneus em integração com o protótipo final não confere bons níveis de segurança de visibilidade em condições de pista molhada.

De fato está claro que devem haver mudanças na segurança da Fórmula 1. Como escreveu Philippe Bianchi, pai de Jules, durante o GP do Japão desse ano: "Não há respeito pela vida do piloto ou pela memória de Jules". E é sob a luz da transparência, questionamentos, levantamento de causas e buscas de soluções que a segurança será melhorada.

Os jornalistas têm que fazer perguntas. Os fãs têm que se sentir envolvidos. Os pilotos, seguros. As equipes precisam fazer exigências. E os diretores de prova junto com a FIA: devem fazer mudanças!

Mariana Becker conseguiu informações com Isola; os fãs viram as imagens pelo F1TV; Gasly ficou furioso com a situação com a qual se deparou. E agora equipes e FIA? O que vocês podem fazer? Estamos aguardando. A situação é grave!

Guilherme Jamil